selva
2 min readJul 6, 2021

UM CADÁVER OUVE RADIO

(esse texto é um exercício fingindo que tenho uma coluna de qualidade duvidosa como tati bernardi)

não consigo escrever, prefiro a enunciação. sempre desejei ser locutora de rádio. um longo monólogo só meu. o fluxo de consciência grafal me deprime. quando falo é sempre puro sangue, pura Verdade. jamais conseguiria por nas letras aquilo que gostaria de comunicar. admiro profundamente quem consegue. é tão comovente ver o português sendo usado de maneira correta, alinhada, límpida. quando escrevo sinto que estou sendo falsa e presunçosa, mais performando que de fato comunicando alguma coisa – não que quando eu fale em voz alta seja diferente, dificilmente quero ou consigo comunicar algo, mas acredito que é possível perceber como estou nua, frágil, tomada de emoção por algum símbolo ou imagem.

sobre o programa de rádio, tenho pensado seriamente em documentar todos os meus surtos mercuriais. com isso quero dizer: falatórios psicóticos. há uma música do sergio sampaio (cala boca zé bedeu) em que ao descrever a mulher amada diz “quando está desesperada…fala fala pra xuxu”. definitivamente isso me serve muito bem.

gostaria de analisar se nas ondas do som é possível captar a Verdade. a minha Verdade. será que gravada alguém conseguiria me ouvir realmente? – e a verdade aqui é a alma (o termo mais próximo que consegui) e não a veracidade e a concretude, essa discussão deixo para os filósofos.

se alguns conseguem ouvir o sussurrar dos mortos nesse embalo radiofônico tem de haver um jeito de drenar o sangue do cadáver. encontrar o centro. mesmo sabendo que somente através da boca sinto o gosto da terra, tem de existir o mediador. o mítico coveiro.

além do meu particular gosto por fofoca acho que por essas e outras academicamente escolhi pesquisar cultura oral.

é possível gravar o canto das sereias? fica aí minha reflexão da madrugada.

(outra coisa pela qual prefiro falar que escrever. a fala tem gingado. pode ser interrompida por um suspiro, um pigarro, uma sirene. ela uma hora simplesmente acaba sem que eu precise modelar um fim. um programa de rádio seria bem mais útil que escrever em meus diários!)